No cais de Pirapora, o lendário vapor Benjamim Guimarães já está na água, depois de 12 anos parado para restauração. A única embarcação movida à lenha no mundo vai ser reinaugurada em 1 de junho, mas ninguém sabe se vai conseguir navegar de novo pelas águas do Velho Chico.
O rio está com acúmulo de sedimentos, como lixo e areia, por causa do desmatamento e expansão do agronegócio no entorno da bacia, lembra o vice-presidente do Comitê, Marcus Vinícius Polignano.
Polignano e a diretoria do Comitê da Bacia do Rio São Francisco denunciaram, em Brasília, o corte de verbas imposto à ANA, Agência Nacional das Águas. O Projeto Preserva acompanhou a reunião. O corte de 33% é no valor dos recursos da cobrança pelo uso da água — valores que, por lei, deveriam ser integralmente repassados aos comitês de bacia.
Essa redução compromete diretamente a execução de projetos fundamentais. Na Bacia do São Francisco, o impacto previsto para 2025 é de R$ 15 milhões, o que já levou à paralisação de processos e à suspensão de novas contratações, explica o presidente do comitê, José Maciel.
“Entre as ações em risco estão obras de saneamento básico, intervenções de esgotamento sanitário em comunidades vulneráveis, reformas de infraestrutura hídrica e até projetos culturais e de fortalecimento de comunidades tradicionais”.
Em muitos pontos ao longo dos 2.860 km não é difícil ver o quanto o rio São Francisco agoniza. Os enormes surubins que deram fama de fartura ao rio viraram história de pescador e não há peixes, porque o rio está sem água. O nível baixo do leito do rio inclusive atrasou o início de uma expedição de pesquisa científica para monitorar a qualidade da água. O barco do projeto “Opará: Observatório cidadão da qualidade ambiental no médio São Francisco” encalhou no rio.
Segundo informou um dos coordenadores do projeto, o pesquisador Maurício Lopes Faria, o rio estava no mesmo nível de agosto do ano passado, no auge da estação seca. A expedição foi marcada na estação chuvosa exatamente para facilitar a navegação.
“Estávamos esperando o rio um pouco mais cheio. Mas está assoreado, com muitos bancos de areia. Nós encalhamos algumas vezes”, afirmou Maurício.
O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Rio São Francisco explica que a vazão do rio começou a mudar com as hidrelétricas. Em todo o caminho, o rio passa por 505 cidades e gera energia em 6 principais usinas: Três Marias (MG), Sobradinho (BA), Paulo Afonso (BA), Apolônio Sales (BA), Luiz Gonzaga (PE) e Xingó (AL).
Nós estivemos nos cânions do Xingó, em Alagoas, onde o rio foi desviado para a construção da hidrelétrica.

“Essa questão da vazão é sempre um problema no São Francisco, porque a gente tem a heterogeneidade das hidrelétricas, que já mudou muito por conta das gerações eólica e solar, mas ainda é o principal fator que muda a vazão de São Francisco. Isso causa problemas absurdos tanto no Alto São Francisco, tanto no Médio e no Baixo São Francisco”. (José Maciel)
Mas é a superexploração do rio para irrigação que leva embora a água do rio. A Bacia do São Francisco perdeu 50% da superfície de água natural entre 1985 e 2020, segundo o MapBiomas. A Bacia sofre com o uso intenso do solo sem qualquer planejamento.
Avanço da agropecuária é a principal ameaça
O maior volume de autorizações do uso da água é para irrigação de áreas de agricultura e pastagens.
“90% das outorgas do São Francisco são para irrigação. Então essa superexploração para irrigação nos quer dizer muito. Quer dizer, inclusive, que nós estamos exportando água do São Francisco para outros países, através de commodities. Então a gente está levando água do São Francisco para muitos outros lugares, diz José Maciel”.
A vegetação também foi impactada: a mesma pesquisa do MapBiomas mostrou que a bacia perdeu 7 milhões de hectares de mata nativa nas últimas três décadas, para a agropecuária.
Em Minas Gerais, o motivo é a expansão da monocultura de eucalipto que foi de 400%. Na Bahia, o problema foi o aumento na área da soja em 650%. E, em Pernambuco e Alagoas, o aumento de pastagem chegou a 85%, segundo os dados do MapBiomas.
A superexploração de água para agropecuária provoca também a redução das águas subterrâneas, segundo pesquisadores da USP.
Aquíferos sofrem redução de volume
Um estudo recente da USP mostra que o São Francisco está devolvendo mais água para o aquífero Urucuia do que recebe dele. O que era uma fonte de abastecimento passou a drenar a energia do rio.
No caso da Bacia do São Francisco, 61% dos rios analisados mostraram potencial de perda de fluxo de água para o aquífero, resultado atribuído ao uso intensivo de águas subterrâneas, principalmente para irrigação.
Os pesquisadores envolvidos no estudo enfatizam que é preciso integrar a gestão de águas superficiais e subterrâneas. Ferramentas baseadas em sensoriamento remoto e dados de campo podem ajudar a mapear regiões críticas e a orientar políticas públicas. Além disso, investimentos em monitoramento hidrogeológico são cruciais.
“O Brasil tem potencial para ampliar a irrigação de forma sustentável, mas é necessário planejar melhor o uso integrado das águas subterrâneas e superficiais para evitar impactos negativos”, afirma José Gescilam Uchôa, primeiro autor do artigo.
📦 A Bacia do Rio São Francisco em números
- Abrange sete unidades da federação: Minas Gerais, Bahia, Pernambuco, Alagoas, Sergipe, Goiás e o Distrito Federal
- Cobre uma área de cerca de 640 mil km²
- São mais de 16 milhões de pessoas que vivem na bacia e dependem de suas águas direta ou indiretamente
- O Rio São Francisco nasce na Serra da Canastra (MG) e percorre 2.863 km até desaguar no Oceano Atlântico, entre Alagoas e Sergipe
- A bacia inclui importantes afluentes, como os rios das Velhas, Paracatu, Jequitaí, Verde Grande, Corrente, Grande, entre outros

🌊 Aquífero Urucuia: o reservatório invisível do Cerrado
O Aquífero Urucuia é uma das maiores reservas subterrâneas de água doce do Brasil, estendendo-se por cerca de 120 mil km², principalmente no oeste da Bahia e norte de Minas Gerais. Ele é vital para manter a vazão do Rio São Francisco, especialmente em períodos de estiagem, por meio das chamadas “águas de base”, que alimentam o rio de forma contínua.
💧 Cobrança pelo uso da água: o que é e para onde vai
A cobrança pelo uso da água é um dos instrumentos da Política Nacional de Recursos Hídricos (Lei nº 9.433/1997). Ela se aplica a usos considerados significativos — como captação para irrigação, indústrias, abastecimento urbano ou lançamento de efluentes — e tem como objetivo incentivar o uso racional e gerar recursos para a gestão da bacia.
Esses valores arrecadados não são impostos, mas sim preços públicos que devem ser reinvestidos integralmente na própria bacia onde foram gerados, conforme determina a lei.
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