Por que o Vale do Jequitinhonha foi o lugar que mais esquentou no país?

Das 30 cidades com maior elevação de temperatura no Brasil, 27 são de Minas Gerais, segundo pesquisa.
Monocultivo de eucalipto em Turmalina, Vale do Jequitinhonha, MG - Foto: Projeto Preserva
O resultado de uma pesquisa nacional sobre anomalias de temperatura nas cidades brasileiras chamou a atenção nas últimas semanas por um dado surpreendente. O levantamento mostrou que, em todo país, o lugar que mais esquentou foi Minas Gerais. Uma região específica registrou as variações mais altas: o Vale do Jequitinhonha.

 

O cerrado mineiro, frequentemente esquecido como pauta ambiental no Brasil, sofre os impactos do desmatamento e da mudança de uso do solo há muitos anos. No Vale do Jequitinhonha, as matas nativas vêm sendo substituídas por maciços de eucaliptos desde os anos de 1970.

 

Não estamos falando de uma área pequena: o Vale é maior que alguns estados brasileiros, tem praticamente o dobro do território do Espírito Santo.

 

A pesquisa é do Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais, o Cemaden, e não é a primeira vez que os números trazem a tendência de elevação da temperatura. O que os pesquisadores ainda não sabiam era em quais regiões esses extremos estavam maiores.

 

Entre as 30 cidades que tiveram a maior elevação de temperatura no Brasil, 27 são de Minas Gerais. Quase todas no Vale do Jequitinhonha, como mostra o mapa ao lado. A cidade de Turmalina teve a maior variação do país, com elevação de mais de 5 graus (5,52°C).

 

 Mapa de anomalias. Fonte: Cemaden

 

As cidades vizinhas Botumirim, Capelinha, Leme do Prado e Veredinha também apresentaram variação acima dos 5,40 graus. Conversamos com uma das pesquisadoras do estudo, a doutora em meteorologia Ana Paula Cunha, para entender os fatores que provocam anomalias de temperatura no Vale.

 

(Projeto Preserva) Compreendemos que o El Niño pode ter contribuído para o aquecimento anômalo, mas quais podem ser os outros fatores associados nessa região em Minas Gerais?

 

(Ana Cunha) O El Niño pode ter contribuído para o aquecimento anômalo, uma vez que durante anos de El Niño, as temperaturas globais tendem a ser mais quentes do que os anos neutros. No entanto, outros estudos que nós já fizemos mostram que em grande parte do país, com exceção da região Sul, há uma tendência crescente de aumento de temperaturas nos últimos 60 anos, então é uma tendência continuada de aumento de temperatura em razão do aquecimento global.

 

“É um processo que só pode ser modificado com a redução drástica dos gases de efeito estufa na atmosfera. Outros fatores contribuem para a elevação da temperatura: o relevo, as mudanças dos usos da terra, como desmatamento, urbanização, degradação do solo”.

 

(PP) Como a degradação do solo contribui para as anomalias de elevação de temperatura? 

 

(AC) Na ausência de umidade no solo, toda energia solar que chega à superfície é utilizada para o aquecimento do ar acima dela. Se a superfície é vegetada e com um certo teor de água no solo, parte da energia é utilizada para a evaporação da água.

 

Como em áreas degradadas não há muito disponibilidade de água no solo, há, portanto, um maior aquecimento da superfície.  

 

(PP) Quais são os efeitos da elevação de temperatura nos meios urbanos e rurais, nos contextos agrícolas e na natureza de forma geral?

 

(AC) As temperaturas mais elevadas podem contribuir para uma série de impactos em diferentes setores, principalmente se persistidas como foi no final de 2023. Podem afetar a saúde, agravando problemas preexistentes, especialmente entre populações vulneráveis, como idosos e crianças pequenas.

 

O calor extremo também pressiona o sistema de energia, uma vez que a demanda é maior por refrigeração. Na agricultura, por exemplo, se este extremo de temperatura ocorre durante os meses iniciais do ciclo de grãos, pode causar queda na produtividade, que podem ser acentuadas se este calor é acompanhado por secas também extremas.  

 

Para chegar aos resultados, a pesquisa combinou dados de satélite gerados pelo INPE e dados de estações meteorológicas para mapear as temperaturas de 5.570 municípios brasileiros ao longo de 2023. Depois, os pesquisadores compararam os números de cada mês com a climatologia do mesmo período, calculando a elevação.

 
O mundo teve o janeiro mais quente da história
 

A tendência de alta já está sendo observada em 2024. Janeiro foi oficialmente o mais quente já registrado, marcando o oitavo mês consecutivo de temperaturas recordes para esta época do ano.

 

Os dados internacionais mais recentes, utilizados pela Organização Meteorológica Mundial, OMM, ainda revelam que as temperaturas da superfície do mar têm batido recordes por dez meses seguidos. O motivo não é apenas o El Niño, mas a combinação dele com a mudança climática “induzida pelo homem”, segundo a OMM.

 

O caminho para a solução também é conhecido: a restauração ambiental se tornou meta em diversos países. Há um esforço global para recuperar 350 milhões de hectares degradados até 2030. É a “Década da Restauração de Ecossistemas”. Só no Brasil estamos falando da meta de recuperar 12 milhões de hectares de florestas até 2030.

 

Restaurar não é esverdear uma área com eucaliptos, por exemplo, como já foi explicado em nossas reportagens aqui. Restaurar é recompor a biodiversidade de uma região. É reconstruir um bioma original usando as espécies nativas do lugar.

 

É exatamente o que não aconteceu no Vale do Jequitinhonha. Por lá, empresas que investem em grandes monocultivos de eucaliptos conquistam prêmios pelo balanço neutro de carbono enquanto os corpos de água secam.

 
A degradação do solo, um caso no Vale do Jequitinhonha
 

Em outubro do ano passado, publicamos uma reportagem sobre a pesquisa que mostrou os efeitos de um maciço de eucaliptos em Turmalina, cidade que apresentou a maior variação de temperatura na pesquisa do Cemaden. Veja aqui.

 
 

As nossas reportagens podem ser republicadas, desde que sem qualquer tipo de alteração e que seja citada a fonte. Deve constar o(s) nome(s) do(s) autor(es) da foto e/ou da reportagem, assim como o nome do Projeto Preserva e, quando possível, o link para a página em que o material foi publicado originalmente.


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