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Os Retratistas do Morro e o carioca Walter Firmo: um encontro de bambas

Beleza e afeto da população negra pelas lentes da fotografia 
Mestre Pixinguinha, retratado por Walter Firmo. Exposição "No verbo do silêncio a síntese do grito" - Reprodução de foto de Walter Firmo

Eles fizeram história ao voltar suas câmeras para a população negra brasileira, numa época em que a fotografia não era acessível a toda população, mas nunca haviam se encontrado pessoalmente. O “Encontro de Bambas”, como foi chamado o evento no Centro Cultural Banco do Brasil, em Belo Horizonte (MG), colocou lado a lado essas figuras centrais da fotografia para conversarem sobre suas trajetórias por trás das lentes.

 

O carioca Walter Firmo, uma referência na fotografia brasileira, carrega o título de mestre das cores. Os mineiros João Mendes e Afonso Pimenta fazem parte do projeto Retratistas do Morro, que já venceu uma das principais premiações de arte contemporânea do país, o Prêmio Pipa 2023. Eles conversaram com o Projeto Preserva.

 
Walter Firmo, Afonso Pimenta e João Mendes – Foto: Naiara Rodrigues
 

Walter Firmo começou sua carreira fotografando ainda jovem para jornais, passando por grandes veículos como Jornal do Brasil, Última Hora, revistas Manchete, Veja, entre outras publicações.

 
“Primeiro eu queria fazer, dentro da minha tenda do ofício, o praticar. Se transcendesse em arte pouco me importava. Só que, durante os anos, eu vi que transcendeu para uma arte consentida. Mas o que eu queria mesmo era aquela coisa do fazer, e que depois virou arte ofício”, contou Walter Firmo.
 

Com a construção da imagem a partir da ideia de narrar fatos, seu olhar passou por acontecimentos históricos e rendeu reportagens vencedoras de prêmios como o Esso de Reportagem, em 1963, com a matéria “Cem dias na Amazônia de ninguém”, publicada no Jornal do Brasil.

 
No encontro em Belo Horizonte (MG), Walter Firmo relembrou momentos icônicos da sua carreira – Foto: Naiara Rodrigues
 

Nos seus cliques estão políticos, pessoas comuns, festas populares, famosos, artistas, esportistas e, ainda, as diferentes camadas sociais.

 
“Eu não queria um fato. Eu queria estar num lugar em que eu visse o fato e que eu pudesse transmutá-lo. Existia aquele fato, mas tinha alguma coisa a mais que eu, Walter Firmo, tinha que ter o controle de que aquilo poderia ter um envolvimento além da sociabilidade, mas de uma escrutinação mais transfiguradora”, destacou.
 

Mais de 200 fotografias dele integram a exposição “Walter Firmo: No Verbo do Silêncio a Síntese do Grito”, que ficou em cartaz no CCBB – BH, onde Walter Firmo se encontrou com os Retratistas do Morro. A mostra traz um panorama dos 70 anos de carreira do artista, que retrata e exalta a população e a cultura negra de diversas regiões do país, em ritos, festas populares e religiosas, além de cenas cotidianas. As imagens registram a poética de Firmo, associada à experimentação e à criação de fotografias muitas vezes encenadas e dirigidas, com destaque para ensaios aclamados, como do maestro Pixinguinha na cadeira de balanço e a série com o artista Arthur Bispo do Rosário.

 
Foto de Arthur Bispo do Rosário, na exposição “No verbo do silêncio a síntese do grito”. Reprodução de foto de Walter Firmo
 

Quem são os Retratistas do Morro?

 

Os fotógrafos João Mendes e Afonso Pimenta fizeram da fotografia um ofício documental no Aglomerado da Serra, desde a década de 1960. Entre os registros estão casamentos, batizados, fotos escolares, eventos familiares e bailes de black music que narram a história e transformações sociais vividas na comunidade considerada a maior de Minas Gerais.

 
Reprodução de foto de Afonso Pimenta, Série DCE Baile Black Soul, com Elana dos Santos, em 1985
 

O coletivo Retratistas do Morro resgata a existência desses fotógrafos que viveram e trabalharam nas favelas registrando cotidianamente os modos de vida de suas comunidades, nos últimos 50 anos. O trabalho inclui pesquisa de imagens, vivências comunitárias, preservação de memória oral e visual, conservação de acervos e restauração digital, propondo reflexões sobre as mudanças fundamentais nos modelos de percepção promovidas por essas fotografias.

 

João Mendes contou que começou aos 15 anos na fotografia, depois de passar por vários empregos e vender picolés de porta em porta. Desde 1968, tem a loja Foto Mendes, onde quatro gerações de moradores do bairro foram fotografadas. Em 1973, tornou-se um dos primeiros fotógrafos profissionais do bairro da Serra, vizinho ao Aglomerado.

 
Reprodução de foto de João Mendes, da Série Becas, de 1985
 

Afonso Pimenta entrou como assistente na loja por necessidade e se consolidou acompanhando a cultura negra na música de Belo Horizonte, vivendo de perto os bastidores do movimento black que surgia na periferia. Ele contou como foi o começo da profissão:

 
“Um cara que me vendeu uma máquina Estática 11, me falou que eu iria ficar rico. E eu entrei na fotografia por uma necessidade, curiosidade e vocação. Naquele dia eu fui com o João fotografar uns batizados. E, como eu vi um fotógrafo mais velho e experiente, cheguei nele para conversar. Ele falou apenas que ‘as pessoas precisam comer também’, e saiu. Eu fui acompanhando e vi que ele entrou num fusquinha, batendo lata, vazando óleo. E vi no vidro traseiro escrito: ‘mesmo sendo fotógrafo eu hei de vencer’. E ali caiu a minha ficha”, contou Afonso Pimenta, arrancando risos.”
 

Na plateia vários jovens contaram as experiências dos pais com o projeto. Alguns disseram que as fotos dos Retratistas do Morro são os únicos registros de suas famílias naquele período.

 

Walter Firmo e os Retratistas do Morro: fotografia-testemunho

 

Se caminho profissional do fotojornalista carioca Walter Firmo ainda não havia se cruzado com a trajetória dos Retratistas do Morro, as obras sempre estiveram em diálogo: a construção da estética de afeto e beleza das comunidades negras, em oposição à narrativa racista perpetuada por tantos anos nas mídias, foi possível a partir da sensibilidade do olhar desses fotógrafos. A antropóloga Janaína Damasceno, professora da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), disse que o encontro foi como um ato de reparação.

 

“O que impediu que esse encontro fosse realizado antes foi a história do Brasil, que impediu que a gente se reconheça e que a gente se conheça”, destacou a antropóloga. Ela também atua como coordenadora do Grupo de Pesquisas Afro Visualidades Estéticas e Políticas da Imagem Negra e é curadora adjunta da exposição de Walter Firmo.

 
“Temos aqui três dos principais fotógrafos do mundo e não apenas do Brasil. Se pensarmos que a população negra do Brasil é uma das maiores do mundo, atrás apenas da Nigéria, o que cada um desses fotógrafos construiu foi um testemunho único. Então o que estamos fazendo não é só pela história do Brasil é pela história Global”. Janaína Damasceno, celebrando a obra dos artistas.
 
O encontro foi realizado no Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB) Belo Horizonte – Foto: Naiara Rodrigues
 

Naiara Rodrigues é jornalista, co-autora do livro-reportagem Diário de Bloco, sobre o carnaval de Belo Horizonte.

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