98% dos projetos em Minas Gerais escapariam da análise ambiental com o PL da Devastação

Especialistas alertam para impacto na Cordilheira do Espinhaço e no Vale do Jequitinhonha
Imagem de barragem de mineração na região de Itabirito (MG) | Foto: Projeto Preserva
Barragem de mineração na região de Itabirito (MG) | Foto: Projeto Preserva

 

Se estivesse em vigor hoje, o Projeto de Lei 2.159/2021, conhecido como PL da Devastação, permitiria que 98% dos empreendimentos licenciados em Minas Gerais fossem aprovados automaticamente, sem qualquer análise técnica ambiental. Isso porque a proposta amplia o chamado licenciamento por autodeclaração para projetos de médio porte, hoje submetidos a algum nível de controle.

O número vem do Sistema de Decisões de Licenciamento Ambiental da Feam, Fundação Estadual do Meio Ambiente de Minas Gerais. Só no primeiro semestre de 2025, 975, dos 993 processos de licenciamento em Minas foram classificados como de pequeno ou médio porte, ou seja, praticamente todos estariam sujeitos ao autolicenciamento.

“É um grande risco. Incluir as atividades de médio porte no autolicenciamento é grave porque abrange a maior parte dos empreendimentos do estado.  Isso é autorizar uma agressão ao meio ambiente sem controle algum”, alerta a consultora Daniela Diniz, ex-subsecretária de Licenciamento Ambiental de Minas.

Pelos dados da Feam, das quase mil atividades inscritas do início do ano até agora, apenas 18 são classificadas como de grande porte e alto impacto. Apenas essas passariam por algum estudo de impacto ambiental, o que representa menos de 2% do total.

Hoje, o licenciamento ambiental é o principal instrumento da Política Nacional de Meio Ambiente. Com ele, surgiram unidades de conservação, zonas de amortecimento, condicionantes ambientais e medidas de compensação, explica Daniela Diniz que, além de ter sido a responsável pela Subsecretaria de Licenciamento Ambiental na Secretaria de Meio Ambiente de Minas Gerais, foi também vice-diretora do Igam, o Instituto Mineiro de Gestão das Águas.

Diniz também alerta para outro ponto crítico do PL: a separação entre o licenciamento ambiental e a outorga do uso da água. Hoje, os dois processos são avaliados de forma conjunta porque, segundo ela, “não é possível dissociar impacto ambiental da água. As bacias hidrográficas têm limites de uso e qualquer novo projeto precisa ser avaliado em relação à disponibilidade hídrica”.

A proposta do PL é permitir que empresas possam operar sem autorização prévia sobre a água que vão usar ou poluir. Isso abriria brechas para o agravamento de conflitos socioambientais e colocaria ainda mais pressão sobre territórios já marcados pela escassez hídrica.

“Isso vai ter um impacto brutal em Minas Gerais, porque é impossível dissociar o licenciamento da avaliação hídrica. Dentre as mais de 600 atividades passíveis de licenciamento, praticamente todas utilizam água” ( Daniela Diniz, ex-subsecretária de Licenciamento Ambiental de Minas).

A consultora ambiental e doutora em Ecologia Flávia Peres alerta para o impacto ambiental em regiões que são “fábricas de água” e estão sob a mira das mineradoras atualmente.

Mineração livre na Cordilheira do Espinhaço

A Cordilheira do Espinhaço é a única cordilheira do Brasil, estendendo‑se por mais de mil km entre o Quadrilátero Ferrífero, em Minas Gerais, e a Chapada Diamantina, na Bahia. É reconhecida pela UNESCO como Reserva da Biosfera desde 2005 e abriga três biomas: Mata Atlântica, Cerrado e Caatinga.

 

Vista aérea da Serra do Espinhaço, Reserva da Biosfera, disputada por mineradoras | Foto: Projeto Preserva

Peres explica que empresas de médio porte têm se instalado cada vez mais na região, atraídas pelas jazidas de minério de ferro e lítio, principalmente na região do Vale do Jequitinhonha. Segundo ela, atualmente, qualquer empreendimento precisa demonstrar, com estudos técnicos, que não afetará áreas sensíveis, cavernas ou cursos d’água. Com o PL, essas exigências desapareceriam. Empresas poderão autodeclarar que não há impacto e começar a operar:

“Estamos falando de uma fábrica de água que está atualmente no foco das mineradoras. Então, para cada empreendimento a ser instalado, nós precisamos desenhar em mapa para identificar qual o impacto no ambiente natural e quais comunidades existem. Então eu posso ter ali uns quatro cursos d’água sujeitos a impactos negativos relacionados àquele empreendimento. No caso do autolicenciamento, não vai haver qualquer controle sobre o impacto”, afirma Peres.

Na porção da cordilheira entre Diamantina, Serro e Conceição do Mato Dentro, operam diversas mineradoras voltadas principalmente à extração de minério de ferro e rochas ornamentais, especialmente quartzito, com impactos socioambientais graves. Ao logo de 2024, o Ministério Público de Minas Gerais ajuizou ao menos 11 Ações Civis Públicas contra essas empresas, exigindo cerca de R$ 82,6 milhões por danos como supressão de vegetação nativa, interferência em recursos hídricos e danos a cavernas.

Mais adiante na cordilheira, estão as cidades do Alto Jequitinhonha onde se concentra a exploração do lítio, como Araçuaí, Itinga, Salinas, entre outras. Essa região compõe um dos trechos mais biodiversos e sensíveis do Espinhaço, com campos rupestres, formações ferruginosas e ecossistemas de transição entre Cerrado e Caatinga, além de diversas comunidades tradicionais e quilombolas.

Silvicultura sem controle em Minas Gerais

O PL 2.159/2021 estabelece que setores como o agronegócio e grandes obras de infraestrutura possam ser automaticamente isentos de licenciamento ambiental. A justificativa é que eles são estratégicos para o país. Flávia Peres lembra que o licenciamento ambiental surgiu para regular qualquer atividade com potencial de causar impacto ambiental:

“Nunca houve distinção por setor. O critério para exigir licenciamento, desde 1981, sempre foi o potencial de impacto ambiental. Qualquer atividade que vai usar ou poluir água, usar recursos ambientais ou impactar pessoas e ecossistemas, precisa de controle ambiental. Dizer que algumas atividades, mesmo que causem impacto, estarão dispensadas de licenciamento é o retrocesso mais perigoso desse projeto”, afirma Peres.

Em Minas Gerais, essa flexibilização preocupa ainda mais porque, em 2024, segundo o governo de Minas, o agronegócio ultrapassou a mineração como principal atividade de exportação, o que amplia o risco de impactos difusos sobre o solo, a água e a biodiversidade. O estado tem a maior área de cultivo de eucaliptos do Brasil, com 2,1 milhões de hectares plantados e o maior valor de produção do país, somando R$ 8,3 bilhões, segundo o IBGE.

Plantação de eucaliptos no Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais | Foto: Projeto Preserva

Em 2024, o Governo Federal sancionou uma lei que excluiu a silvicultura do rol das atividades potencialmente poluidoras e utilizadoras de recursos ambientais. A lei 14.876 alterou a Política Nacional do Meio Ambiente. Desde então, o licenciamento ambiental para o plantio de florestas de pinus e eucaliptos foi simplificado e o setor deixou de pagar a Taxa de Controle e Fiscalização Ambiental. “Da forma como está hoje, a silvicultura precisa fazer o licenciamento na modalidade simplificada e autodeclaratória. Com o novo PL, vai haver a dispensa total de licenciamento”, explica Daniela Diniz:

“A silvicultura é altamente impactante para o solo e a água, já que afeta o lençol freático e a recarga hídrica. Dispensar essas atividades de qualquer licenciamento é um contrassenso, principalmente nesse momento em que o Brasil anuncia que vai cumprir metas ousadas para conter a crise climática”.

O PL 2.159/202, sem data para ser analisado pela Câmara dos Deputados, significará o desmonte de décadas de avanços na proteção ambiental brasileira, escancarando a porteira para empreendimentos com alto potencial de impacto operarem sem qualquer controle prévio. Em Minas Gerais, onde nascem importantes bacias hidrográficas, a proposta ameaça não apenas o equilíbrio ambiental, mas também os direitos coletivos à água, à terra e à vida.

 


 

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